terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Niels Lyhne (antologia- parte2)

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Dance in the City, Renoir




O primeiro ano transcorreu semelhantemente ao tempo em que se enamoraram. Mas quando a vida de casados deixou de ser novidade, Lyhne não pôde mais esconder de si mesmo a falta que sentia de expressar distintamente o amor. Ele se cansara de lustrar a plumagem do romance... Nunca concebera o amor qual uma chama inquieta e eternamente desperta, que marca sua força, espalha sua luz em cada recanto da existência. O amor para ele era mais como o brilho do carvão no leito de cinzas...
Bartholine não era mais inexperiente quanto aos livros ou à vida. Conhecia-os tão bem quanto ao marido.
Ele lhe dera tudo o que possuía- e agora queria continuar distribuindo. Era impossível; ele não tinha mais nada a oferecer.
Havia um único consolo: Bartholine esperava um filho.


Bartholine há muito percebera que sua concepção sobre Lyhne fora mudando lentamente, e que ele não mais permanecia no alto pódio onde ela o colocara em seus dias de romance. [...]
Isso fez com que ela perseguisse o amor ainda mais ardentemente... Por um tempo tentou fazer com que Lyhne a acompanhasse, a despeito da resistência dele; recusava-se a aceitar aquilo de que já suspeitava; mas quando, finalmente, o fracasso de seus esforços fê-la duvidar se sua própria mente e coração realmente haviam possuído todos os tesouros que ela imaginara, subitamente ela o abandonou, tornou-se fria, silenciosa, reservada e com frequência se afastava para lamentar as ilusões perdidas.
Assim estavam as coisas entre marido e mulher quando Bertholine deu à luz. Era um menino, e eles o chamaram Niels.

(Niels Lyhne, de Jacobsen- tradução inteiramente livre e despretensiosa)



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segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Niels Lyhne (antologia- parte1)

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Imagem: Young woman reading by a window, Delphin Enjolras



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[...] Ela amava poesia.
Ela vivia poemas, sonhava poemas, e punha a fé nos poemas acima de qualquer coisa neste mundo. [...]
Um belo dia um pretendente chegou até ela. O jovem Lyhne...
Ali finalmente estava alguém vindo do outro lado do mundo, alguém que vivera em grandes e distantes cidades [...], onde o ar era vibrante ao toque dos sinos, ... onde o fumo das fogueiras dos ciganos viajara sobre maciças e folhosas florestas [...].
Todas essas coisas ele lhas contou, não como se fazia nos poemas, mas de um jeito tão verdadeiro [....]. Ele também falou de pintores e de poetas... O amor o fez poético.




Bartholine estava feliz, pois seu amor possibilitou-lhe distribuir as vinte e quatro horas do dia numa cadeia de episódios românticos. Foi como um romance quando ela desceu a estrada para conhecê-lo e quando se despediram naquele dia. Foi como um romance quando, do alto da colina, sob o sol que se punha, ela lhe acenou uma última vez antes de se recolher ao pequeno e quieto aposento, estupidamente feliz, para se entregar às lembranças dele. E quando ela colocou o nome dele em suas preces matinais, ali havia romance, novamente.
[...]
Em seguida, como era de se esperar, eles estavam casados.

(Niels Lyhne, de Jacobsen- Parte 1 - tradução inteiramente livre e despretensiosa)



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domingo, 1 de janeiro de 2012

Um novo começo (sobre conselhos)

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Assim diz Rilke sabiamente sobre conselhos:

...no fundo, e justamente quanto aos assuntos mais profundos e mais importantes, estamos indizivelmente sozinhos, de modo que muita coisa precisa acontecer para que um de nós seja capaz de aconselhar ou mesmo ajudar o outro, muitos êxitos são necessários, toda uma constelação de acontecimentos tem de se alinhar para que isso dê certo alguma vez.



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Um novo começo (continuando)

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Ainda Rilke...



- Sobre o sexo:

A volúpia corporal é uma vivência dos sentidos, não difere do simples olhar ou da pura sensação de água na boca causada por uma fruta; ela é uma grande experiência, infinita, que nos é dada, um saber do mundo, a plenitude e o brilho de todo saber. Não é ruim o fato de a aceitarmos; ruim é o fato de que quase todos abusam dessa experiência e a desperdiçam, usando-a como um estímulo nos momentos cansados de sua vida, como uma distração, em vez de uma concentração para alcançar pontos mais altos.




- Sobre os amantes:

Assim, aqueles que se juntam durante as noites e se entrelaçam em uma volúpia agitada fazem um trabalho sério, reúnem doçuras, profundidade e força para a canção de algum poeta vindouro que surgirá para expressar deleites indizíveis. Eles convocam o futuro; mesmo que errem e se abracem cegamente, o futuro virá apesar de tudo ...



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Um novo começo (cont.)

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Mais algumas deliciosas descobertas em Rilke

- Sobre não encontrar respostas:

Aqui, onde há uma região poderosa em torno de mim, sobre a qual avançam os ventos vindos do mar, aqui sinto que nunca um homem poderá dar uma resposta às perguntas e aos sentimentos que têm vida no fundo do seu ser. Pois mesmo os melhores erram nas palavras quando elas devem significar o que há de mais leve e quase indizível.



-Sobre a ansiedade em todos os começos:


O senhor é tão jovem, tem diante de si todo começo, e eu gostaria de lhe pedir da melhor maneira que posso, meu caro, para ter paciência em relação a tudo que não está resolvido em seu coração. Peço-lhe que tente ter amor pelas próprias perguntas, como quartos fechados e como livros escritos em uma língua estrangeira. Não investigue agora as respostas que não lhe podem ser dadas, porque não poderia vivê-las. E é disto que se trata, de viver tudo. Viva agora as perguntas. Talvez passe, gradativamente, em um belo dia, sem perceber, a viver as respostas.



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Um novo começo

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Foi surpreendente a leitura de Cartas a um jovem poeta. Não imaginei que, além de representar a visão de um dos maiores poetas da literatura universal, pudesse ser uma lição de vida. Creio ser possível extrair do livro algumas boas ideias para manter no ar em 2012, aproveitando o início deste ano. Como são gotas de imensa sabedoria, sugiro saboreá-las lentamente, uma por dia, uma por semana, ou conforme formos sendo capazes de absorver o que elas nos sugerem. Iniciarei o ano com algumas dessas lindas imagens de Rilke sobre a vida... Espero que também digam algo a vocês...





- Sobre como enxergar a vida...


Utilize, para se exprimir, as coisas do seu ambiente, as imagens dos seus sonhos e os objetos de sua lembrança. Se a própria existência cotidiana lhe parecer pobre, não a acuse. Acuse a si mesmo, diga consigo que não é bastante poeta para extrair as suas riquezas. (Carta 1)





- Sobre a ironia...



Não se deixe dominar por ela, principalmente em momentos sem criatividade. Nos momentos criativos, procure fazer uso dela como de mais um meio para abarcar a vida. Usada com pureza, ela também é pura, e não é preciso envergonhar-se dela. Caso a intimidade seja excessiva, caso o senhor tema essa crescente intimidade com a ironia, volte-se para assuntos grandes e sérios, diante dos quais ela se torna pequena e desamparada. Procure o fundo das coisas: ali a ironia nunca chega. (Carta 2)





- Sobre a leitura...


O senhor experimentará a grande felicidade de ler esse livro* pela primeira vez, passando por suas incontáveis surpresas como em um sonho renovado. Mas posso lhe dizer que, mesmo depois, o leitor volta sempre a percorrer esses livros com espanto, e que eles não perdem nada do seu poder fantástico, persiste seu caráter fabuloso, com o qual cumularam quem os leu pela primeira vez.
Sempre temos prazer com eles, ficamos cada vez mais agradecidos e, de algum modo, melhores, com uma visão mais simples, com uma fé mais profunda na vida e sendo mais afortunados e maiores nela. (Carta 3)



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Todos os trechos em itálico são de "Cartas a um jovem poeta", de Reiner Maria Rilke (1875-1926).

*Rilke refere-se ao livro Niels Lyhne, de Jens Peter Jacobsen.

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