sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Acordeão em Vermelho

Este texto publiquei há muito tempo, mas me sinto novamente numa fase de "Estudos em Vermelho"... e Freud nem precisa explicar!

Era apenas um homem cego que se preparava para tocar acordeão na praça, diante da escadaria do imponente Municipal. Ninguém parecia dar por ele. Chamou-me a atenção, entretanto, e me detive, aguardando que começasse. Acomodou o chapéu de boca para cima, e o acordeão apoiou sobre os joelhos. Os dedos ensaiaram titubeantes, ameaçaram encostar no teclado e finalmente se derramaram sobre ele, infernais! Extraíam-lhe música que jamais! Incomum.

Aos poucos, a praça desvanecendo, senti-me voar distante, para uma casa, talvez. A sala atapetada e vermelha, os móveis antigos. Tinha as janelas abertas, por onde se introduzia uma brisa noturna e morna.

A princípio estranhei aquele sonho em hora tão imprópria. Lembrei-me do músico de instantes antes, mas não me preocupei em demasia, era decerto um sonho. Pude então ver-me o reflexo num espelho dourado. Trajava roupas das quais não tinha memória: vestido ligeiro, rendas, ligas e meias. Uma porta se abriu, e por ela surgiu um homem. Seus olhos brilhavam, arderam sobre mim! Espírito, e não homem! Salamandra que recendia ao cinamomo e de cuja boca brotavam volúpias. Sou o Desejo, anunciou-se, e me tomou para dançar. Eu, que dantes cogitava sonhar, agora testava o delírio que inebriava. Nossos corpos, indecentes parceiros no viçoso enlace, colaram-se cadentes, iam e vinham. Ofereciam-se. Provavam-se. Engoliam-se. Assimilavam-se. Não havia limites dentro daquela sala, a não ser o da rubra música.

Mas ela cessou.

E como um tordo farto de uvas, fui devolvida à praça cinzenta. Busquei instintivamente pelo cego, mas ele também se fora. Não saberia explicar como pudera partir tão rápido, mas levara consigo a visão secreta e lasciva de que eu provara. A cidade chamou-me austera e definitiva, e despertei . No decorrer daquele dia e de todo o tempo no resto de minha vida, evitei entender o que acontecera, como fosse tudo o louco sonho que uma mulher esconde para si mesma. Às vezes, porém, jurava ouvir aquela melodia, longe, em algum lugar no profundo centro fremente, bem dentro de mim.

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