A noite atrás da porta
Algumas portas não deveriam ser abertas. Penso bastante nisso.
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Perdi o sono certa noite quente de verão. Nenhuma brisa, os mosquitos, a ausência de vida nas ruas, nada me deixava dormir. Levantei-me atrás de um copo de leite. Já o tinha entre as mãos e me preparava para bebê-lo quando leves batidas chamaram-me à porta da entrada. Estranhei a visita tardia, mas o chamado insistiu. Depus o copo sobre a mesa e avancei pela sala até a janela. Dali foi possível identificar quem buscava por mim. Reconheci o homem franzino e de terno vinho. Jorge Serrat era seu nome e namorara minha prima durante três anos. Deve ter percebido que o olhava e se virou sorrindo para mim. Acenei em resposta e fui recebê-lo apropriadamente, convidando-o a entrar.
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Desculpou-se por aparecer tão tarde e sem aviso, mas precisava falar comigo. Era ela. Adélia! Impossível esquecer-se dela! Procurava-a sem descanso porque necessitava retornar urgentemente para a Espanha, de onde se deslocara apenas para revê-la. Seu olhar era todo uma saudade. Notava-se que gostava realmente de minha prima. Vestira-se com esmero, os cabelos cuidados, nenhum fio em desalinho.
Passamos toda a madrugada conversando. Ele me contou de sua vida junto aos pais, já idosos, num vilarejo de casas de pedra. Longe do movimento das metrópoles sentia-se mais miserável e incapaz de superar o rompimento de seu relacionamento. Adélia e ele planejavam o casamento, mas os pais do rapaz pediram que tornasse de imediato para a Europa. Como Adélia não suportasse a idéia de se afastar de sua própria família, e talvez porque não estivesse tão apaixonada quanto ele, optaram pela separação, deixar as coisas andando como fossem, cada um para o seu lado. Jorge, entretanto, não se apanhava mais sem Adélia. Minha prima, por outro lado, recusava-se a mencionar o ex-noivo e tampouco nos permitia nomeá-lo. Proclamava-se feliz como há muito tempo não era.
Combinei de contatá-la e acertar uma entrevista entre nós três, pois antecipava que Adélia não aceitasse vê-lo a sós. Ele passou a noite em casa, no sofá. Eu me deitei e dormi as duas horas que faltavam para o horário em que costumava me levantar.
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Tomamos café e nos despedimos até o final da tarde, quando eu lhe traria a resposta de Adélia. Queria ter com ela em pessoa, detalhar-lhe o estado melancólico de Jorge, convencê-la, até, a recebê-lo. Não foi possível, ela viajara para o sul onde ficaria até o final de semana. Surpreendi-me deveras entristecido em ter de dar a notícia ao jovem enamorado. Em casa, porém, ele já não me esperava. Não havia rastro de sua presença. Julguei que arrumara toda a roupa de cama, lavara a louça e guardara tudo. Teria desistido, meu protegido, embora soasse decidido na véspera? Ou saíra para espairecer e em breve o teria frente a frente para negar-lhe a chance de rever a mulher amada?
***
Nunca mais o vi. Era fim de tarde do dia 24 de janeiro de 1967. Alguns dias depois que Adélia chegou de viagem, contei-lhe o acontecido. Ela se pôs a chorar. Mostrou-me então uma carta que trazia dobrada dentro da carteira. Em palavras trêmulas, a Sra. Serrat comunicava que seu filho Jorge havia falecido num acidente a caminho do aeroporto. Queria tornar ao Brasil para buscar Adélia, fazê-la esposa. O acidente ocorrera no dia 22 de janeiro daquele mesmo ano, dois dias antes de sua aparição em minha porta.
- Não era ele, dizia Adélia... Não poderia ser...
Questionei a data na carta, minha saúde mental, a sanidade da mãe do rapaz. Mas uma mãe não se confunde com uma coisa assim, ponderou Adélia, não com a morte do único filho.
Jamais confiei em eventos que a ciência não dominasse e ainda espero compreender o que houve de verdade quando acreditei estar diante de um homem dado como morto. Algumas vezes, no entanto, sonho com Jorge Serrat e seu rosto de fina amargura. Desperto então com a nítida sensação de batidas à porta de minha casa. Levanto-me apreensivo, relutante, para encontrar apenas a longa noite do lado de fora.
2 comentários:
Fantástico, em todos os sentidos da palavra.
Beijos
Fantástico, intrigante, gostoso de ler.
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