Era um colégio imenso, escuro, prédio antigo, fechado para as férias de verão. Os degraus de madeira que conduziam ao primeiro andar gemiam a cada passo do menino.
Daniel explorava o internato onde estudaria quando os alunos regressassem, agora que ele ganhara o direito de ser um dos meninos do famigerado Kér Berus. Não viu diferença na enorme sala de aula de carteiras rigorosamente enfileiradas. Diferente, porém, era a lousa negra que avistou no fundo da sala. Era muito mais brilhante que qualquer outra, muito mais chamativa, muitíssimo mais proibida! Como que para provocá-lo, descobriu no chão um branco pedaço de giz, descuido certo do faxineiro cansado que conhecera na noite anterior. Tomou-o nas mãos.
Brincou, a princípio fingindo, que desenhava aviões cujos motores ronronavam em eco pela sala quase vazia. Lentamente, despertos pelas máquinas que agora cruzavam a ardósia preta, dinossauros sonolentos buscaram alimento nas copas de duas longilíneas árvores. Um rio largo e faminto, atiçado por terrível tempestade, engolia a paisagem, e como se pudesse, um alvo e risível barquinho navegava pelas águas escuras sem saber da imensa cachoeira que o esperava logo a frente. Do lado oposto ao da interminável queda d'água por onde escoou o barquinho, Daniel inventou, tão fácil quanto o sorriso que lhe veio ao rosto, um sombrio castelo no cimo de uma montanha escarpada. O menino lhe deu então várias janelas para que a construção melancólica pudesse respirar. Foi quando viu, ainda à deriva, o barquinho que sobrevivera miraculosamente, e que agora aportava na praia de areia cinzenta. Checou-lhe os mastros, as velas, todas as linhas estavam em perfeito estado, como se aquela viagem apenas começasse.
- Daniel! Daniel!
Era a voz potente do pai quem lhe chamava. O menino apressou-se em limpar o quadro com a manga da camisa. Se alguém soubesse que o filho do zelador já chegara à escola agindo tão incivilizadamente, seu pai seria repreendido.
Aos poucos não havia mais um castelo que sonhar, nem barco aonde ir, nem cachoeira por onde cair, nem gigantes pré-históricos, nem aviões para deixar-se levar, no entanto tudo estava como antes, limpo e em ordem.
Daniel colocou o giz sobre a mesa do professor. Meninos precavidos não podem ser pegos andando com coisas que não lhes pertencem! E se viu conferindo de novo a lousa, temente de que fosse desmascarado. Mas nada parecia ter sido tocado. O menino fechou a porta e desceu lentamente a queixosa escadaria para encontrar-se com o pai. Já estava quase no último degrau quando pensou ter ouvido ruídos no andar de cima. Que bobo, disse para si mesmo, é só imaginação, e se apresentou ao impaciente homem grisalho que o aguardava no jardim.
- Onde esteve?- perguntou-lhe, o pai.
- Só estava olhando...-respondeu timidamente.
- Não mexeu em nada, verdade?
- Nada...
E caminharam em direção aos medonhos portões de ferro que separavam o Kér Berus da construção contígua no fundo do terreno, onde viveriam, a partir de agora, o zelador e seu filho.
Tivessem olhado para trás, para a janela de um certo cômodo no primeiro andar, ambos veriam algo extraordinário. Relâmpagos iluminavam a mesma sala onde estivera Daniel há poucos instantes. Ressurgindo dos traços fracos na lousa negra, os personagens de uma história que se interrompera puseram-se novamente em ação. E bimotores de asas ebâneas rasgaram o espaço, incomodando os dinossauros de pescoços colossais ,que tentavam abocanhá-los. Logo abaixo, furioso rio arrastava valente barquinho em direção à inesperada e comprida queda d'água...