domingo, 16 de novembro de 2008

Adelita terra e mar

(Este texto deveria ser apenas descritivo, minha personagem para o Jogo das Personas Trocadas. Infelizmente, baseada em fatos reais, esta personagem fugiu de meu controle e me contou um pouco mais que o esperado...)




Adelita terra e mar

Dona Adelita Steffanini carrega em suas frágeis costas 95 ou 96 anos de existência. Isso é o que estima a família porque a mais velha mulher do clã de origem italiana nunca mostrou a ninguém seus documentos pessoais, muitíssimo menos aqueles que lhe denunciariam a idade.


Tudo em Dona Adelita é pequenino: o corpo, a voz, o azul espremido dos olhos, o andar dificultoso e de passos apertados. As más línguas também acrescentariam à sua pequeneza, uma alma pouco dada a sorrisos e caridades.



Os vizinhos da "Matusquela do 301", como nossa personagem é mordazmente conhecida no edifício da Zona Sul , se incomodam com o volume absurdamente alto da televisão e do rádio nas horas mais impróprias e os constantes deslizes com gás de cozinha de Dona Adelita. Já tiveram de chamar a Comgás e os bombeiros às pressas inúmeras vezes com receio de que todo o condomínio voasse pelos ares.



Insensível às reclamações, Dona Adelita segue suas próprias regras. Levanta-se com o sol, dirige-se à padaria, implica com o caixa sobre o troco, quase sempre em moedas que lhe pesam insuportavelmente no porta-níquel, e volta para seu lar. Ali, ouvindo sua estação AM preferida, aguarda pela mocinha que lhe traz as compras da quitanda, lhe prepara a comida e arruma a casa, claro, sempre deixando algo para trás, um chão perigosamente úmido, um vidro com digitais, uma panela pouco areada. Entretanto, a empregada, assim como tudo na casa de Dona Adelita , é mantida pelo sobrinho que ela ajudou a criar e a quem não vê há uns 3 anos. Ela se contém, portanto, nas críticas para não reclamar dos dentes daquele cavalo dado, uma mula imprestável seria mais correto, mas, quem na idade dela se pode permitir o luxo de esperar demais da vida? No passado sim, ela já tivera expectativas. Há longo, longo tempo, quando seus irmãos e pais ainda eram vivos.




Fora numa época distante em que a família de muitas posses se relacionava com pessoas importantes. As duas filhas, Adela e Andradina, eram moças bonitas, do tipo harmonioso e refinado. Sabiam que a educação tradicional lhes preparara para um bom casamento e que tudo era apenas questão de paciência, até que se decidissem por um dos mancebos da imensa fila de cavalheiros paulistanos dispostos a desposarem uma das belas italianinhas. Mas o amor não veio. Nem para uma, nem para a outra. Adelita chegou a desprezar um rapazola que depois seria presidente do país, mas seu coração não parecia se arrepender disso. Nem quando os anos foram correndo e arrastando para longe seu pai, sua mãe, seu irmão, o único casado e com filhos, e finalmente, há pouco tempo, sua irmã mais velha, a saudosa Dininha.



Não se pode dizer que Dona Adelita não tenha nenhum arrependimento, no entanto. Não raro se põe a chorar para dentro, sem lágrimas, numa mágoa que não encontra culpado outro que não ela mesma. Não pelo ex-presidente, não por tantos e melhores candidatos, mas por um vigoroso cocheiro mexicano, que lhe sussurrou um dia, ao ouvido, uma conhecida rancheira: Se Adelita partisse com outro/ A seguiria por terra e por mar/ se por mar, num navio de guerra/ se por terra, em um trem militar... E Adelita nunca mais se esqueceu do jovem que a perdera naquela fria tarde de 1949. E tampouco pode encontrá-lo novamente, em nenhum outro sonho, por terra ou por mar.


Um comentário:

Claudia disse...

Adorei a Dona Adelita. A construção está muito boa, pois ela inicia como uma velha ranzinza que nenhum vizinho tolera, mas conforme ela se desvenda ao leitor, nos simpatizamos com sua dor.

Um beijo,
Claudia