Tudo em Dona Adelita é pequenino: o corpo, a voz, o azul espremido dos olhos, o andar dificultoso e de passos apertados. As más línguas também acrescentariam à sua pequeneza, uma alma pouco dada a sorrisos e caridades.
Os vizinhos da "Matusquela do 301", como nossa personagem é mordazmente conhecida no edifício da Zona Sul , se incomodam com o volume absurdamente alto da televisão e do rádio nas horas mais impróprias e os constantes deslizes com gás de cozinha de Dona Adelita. Já tiveram de chamar a Comgás e os bombeiros às pressas inúmeras vezes com receio de que todo o condomínio voasse pelos ares.
Insensível às reclamações, Dona Adelita segue suas próprias regras. Levanta-se com o sol, dirige-se à padaria, implica com o caixa sobre o troco, quase sempre em moedas que lhe pesam insuportavelmente no porta-níquel, e volta para seu lar. Ali, ouvindo sua estação AM preferida, aguarda pela mocinha que lhe traz as compras da quitanda, lhe prepara a comida e arruma a casa, claro, sempre deixando algo para trás, um chão perigosamente úmido, um vidro com digitais, uma panela pouco areada. Entretanto, a empregada, assim como tudo na casa de Dona Adelita , é mantida pelo sobrinho que ela ajudou a criar e a quem não vê há uns 3 anos. Ela se contém, portanto, nas críticas para não reclamar dos dentes daquele cavalo dado, uma mula imprestável seria mais correto, mas, quem na idade dela se pode permitir o luxo de esperar demais da vida? No passado sim, ela já tivera expectativas. Há longo, longo tempo, quando seus irmãos e pais ainda eram vivos.
Fora numa época distante em que a família de muitas posses se relacionava com pessoas importantes. As duas filhas, Adela e Andradina, eram moças bonitas, do tipo harmonioso e refinado. Sabiam que a educação tradicional lhes preparara para um bom casamento e que tudo era apenas questão de paciência, até que se decidissem por um dos mancebos da imensa fila de cavalheiros paulistanos dispostos a desposarem uma das belas italianinhas. Mas o amor não veio. Nem para uma, nem para a outra. Adelita chegou a desprezar um rapazola que depois seria presidente do país, mas seu coração não parecia se arrepender disso. Nem quando os anos foram correndo e arrastando para longe seu pai, sua mãe, seu irmão, o único casado e com filhos, e finalmente, há pouco tempo, sua irmã mais velha, a saudosa Dininha.
Não se pode dizer que Dona Adelita não tenha nenhum arrependimento, no entanto. Não raro se põe a chorar para dentro, sem lágrimas, numa mágoa que não encontra culpado outro que não ela mesma. Não pelo ex-presidente, não por tantos e melhores candidatos, mas por um vigoroso cocheiro mexicano, que lhe sussurrou um dia, ao ouvido, uma conhecida rancheira: Se Adelita partisse com outro/ A seguiria por terra e por mar/ se por mar, num navio de guerra/ se por terra, em um trem militar... E Adelita nunca mais se esqueceu do jovem que a perdera naquela fria tarde de 1949. E tampouco pode encontrá-lo novamente, em nenhum outro sonho, por terra ou por mar.
Um comentário:
Adorei a Dona Adelita. A construção está muito boa, pois ela inicia como uma velha ranzinza que nenhum vizinho tolera, mas conforme ela se desvenda ao leitor, nos simpatizamos com sua dor.
Um beijo,
Claudia
Postar um comentário