sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Abissais

(Dedicado ao Mestre que me desafiou, um escritor em desassossego)

Eu sabia! Tinha que ficar no meu canto, sem chamar a atenção, mas não, quem é visto é lembrado. O burrinho pedrês agora sou eu! E apressaram-me na tarefa. Que alma roubar? Estarei preparado?

Aqui me vejo, próximo da mesma casinha amarela onde se reuniram os Quatro Cardeais em uma noite clara como esta. Aqui hei de encontrar uma alma que me sirva. Mens sana in corpore sano? Se assim for este é bastante belo, veja como ri, deve ser bom para variar ocupar o corpo de quem está feliz. E aquele? Seria igualmente maravilhoso viver em quem se apaixonou e assim, de dentro dele espiar tudo e quem sabe, depois, com um beijo ir viver nela e descobrir como amam os mortais. Não, não, Aquele Que Manda, implacável, não aprovará quando lhe contar sobre isto Florido demais para um abissal como você! Deixe estar, que aqui não faltam candidatos.

Sigamos essa, que vem e desliza, levando a lua sobre a testa! Que gente engraçada! Se me advertissem, teria consultado O Manual de Obsessão- Guia Prático Para Demônios Inexperientes. Adejo rápido sobre outra, ali, atrás da barra do único bar aberto. Leio-lhe os pensamentos. Preocupa-se com o horário! Por que oito e meia? O que espera? Poderia eu esperar junto dela, colocar-me quietinho no seu ombro, leve, pousado mais como quem repousa. Roubar-lhe segredos e temperos. Entregar-me-los-ia sem luta, talvez, com esse semblante de tão plácida senhora?

Provo.
Acomodo-me.

Gentilmente nos pomos a aguardar. Pode que perceba que não é mais a mesma, pode que erre no sal e no açúcar sem saber por quê. Mas agora sou eu quem está por trás de seu olhar maternal, aguardando os filhos que virão famintos. Serei descoberto, descortinado, expulso, esconjurado. Até lá muito terei feito, visto e aprendido. Então, outros como eu estarão tomando quem daqui se aproximar. Lentamente o faremos, como há milhares de anos, depois retornaremos ao Mestre, que experimentará o que lhe contarmos e nos dispensará, finalmente, para a terra da qual nunca se volta...


7 comentários:

Retrix disse...

Oh, céus. Como será o pão de queijo da semana que vem?
Talvez seja melhor fugir para o MacDonald's...

Laura Fuentes disse...

Uau, nesta quarta parte da odisséia, sua escrita leve e certeira, Olga, fez do nosso caminhante um vampiro de segredos e temperos de pouso muito leve...isso tá ficando cada vez melhor! O pão de queijo da semana que vem virá certamente turbinado!

Bruno Cobbi disse...

Muito bom, nobre irmã de armas!

Sinto-me pretensiosamente honrado em ter parte de minha alma roubada (e até invejada) por esse seu vil e cruel Rastejante do Caos.

Deleitei-me em seu enigma e espero que vc deleite-se em seu prêmio, entregue pelas mãos do Cardeal Mestre.

Luz, guerreira!

Claudia disse...

Olga, adorei o texto. Principalmente a forma escrita. Parece uma trança. Parabéns.

Claudia disse...

Ah, sim, já ía me esquecendo... Deverei eu comer o pão de queijo no próximo encontro e levitar?

Sady Folch disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Sady Folch disse...

Roubar uma alma com tamanha gentileza é para, como diria Dias de Mello, uns poucos iniciados.

Sua teatralidade insposta ao texto faz-nos recitar, declamar, aproveitando a cada suspiro que das palavras se fizeram o suspense.

Tamanha dedicação encontra porto seguro na delicadeza que nasce da alma.

Estou encantado com o resultado de seu desafio. Meus sinceros parabéns, acompanhados de minha admiração.

Obrigado.

Sady Folch