segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Quem sai na chuva é para recordar...


Caríssimos, preparem os guarda-chuvas, as galochas, os coletes salva-vidas, parece que entramos no período de chuvas vespertinas na capital paulista. As tempestades, pontualíssimas, atacam entre 15H e 17H, complicando-nos a vida, parando o trânsito, alagando ruas, derrubando árvores e fios de alta-tensão, sem falar de nossa já escassa paciência, que vai, literalmente, por água abaixo. Entretanto, segundo a meteorologia ainda teremos muita chuva pela frente, principalmente na próxima sexta-feira. E, mesmo falando tão mal dessa precipitação atmosférica, vale a pena recordar sua versão romântica, o lirismo em cenas de filmes que não seriam iguais sem a boa e velha chuva...

* Se não começasse a chover logo, temo que Liesl e Rolfe jamais se esconderiam no mirante e dariam o primeiro beijo de amor, em A Noviça Rebelde;


* A chuva foi artista ao delinear o corpo de Elektra para o herói não vidente Demolidor, no filme com Ben Affleck e Jennifer Garner;


* Debaixo de um temporal, Charles e Carrie finalmente se confessam mutuamente enamorados em Quatro Casamentos e Um Funeral;

* Uma chuvinha teimosa e patética é pista incontestável de que algo está muito errado na vida de Truman Burbank, em O Show De Truman;


* "Se a terra se abrisse sob meus pés eu não me moveria até dizer isto: Lois, você aceita se casar comigo?". É o que Clark Kent pergunta, apesar dos raios e trovões, na série Lois e Clark, As Novas Aventuras do Superman. Identidade secreta descoberta, a primeira atitude do herói-cavalheiro será usar sua visão de calor para secar as roupas de Lois Lane;


* A coreografia imortal de Singing in the rain não faria sentido em noite de estio; O chape-chape da chuva é providencial;


* É sob chuva que a personagem de Meryl Streep tem de decidir se salta do carro e do casamento seguro para os braços de um Clint Eastwood solitário e apaixonado. Diferentemente dos demais exemplos, aqui a chuva não é protagonista, mas reforça a sensação de ansiedade em As Pontes de Madison;


* Uma das cenas mais cômicas de Melhor é Impossível se dá quando uma decidida porém recatada Helen Hunt atravessa, sem guarda-chuvas, a cidade chuvosa em direção à casa de Jack Nicholson. Totalmente ensopada, a moça então percebe que sua roupa virou uma segunda pele; ao mesmo tempo, o atencioso anfitrião lhe oferece uma toalha para enxugar... o capacho, que está encharcado;


* Para quem reclama da água em dia de chuva, devia acompanhar a cena dos sapos chovendo em Magnólia. Os anfíbios caíram do céu e modificaram muitas vidas aquela noite.

HD189733b e uma nova promessa de vida

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Em imagens retrospectivas deste nosso velho ano, destaca-se a de um planeta, o HD 189733b, de que até agora não ouvira falar. (Não pude evitar a lembrança de um certo asteróide B612, onde viveriam um pequeno principezinho, uma rosa, alguns brotos de baobás e, quem sabe, um carneiro). Na legenda da foto, a constatação de CO2 na atmosfera do planeta, o que reabre portas à conjectura de existência de vida em outros sistemas além do nosso (o HD189733b, coincidentemente descoberto por um francês, situa-se fora do sistema solar e foi o primeiro nessa localização a ser mapeado). Existirá vida ou não nos bilhões de anos-luz pelo universo, o fato é que sempre imaginaremos, como Saint-Exupéry, alguma espécie inteligente e bondosa a nos procurar, talvez tão ansiosamente quanto é por nós esperada.


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Alguns textos são unicamente registros tolos de uma mente desocupada e talvez devessem permanecer apenas na memória do computador. Mas, pensando melhor, talvez haja algo de bom nas tolices divididas... talvez não...

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Marcadores meramente ilustrativos: tolices de minha inocência que se perde; chuva e morte; rondas pela cidade selvagem

Ontem a tarde estive na Cobasi do Aeroporto comprando ração e, impossibilitada de sair debaixo da tempestade que inundou São Paulo, demorei-me além do normal passeando por seus corredores. Distraía-me com os peixes, os canários e as personatas, embora discorde de aprisioná-los, quando, mais a frente, encontrei a exposição de hamsters e camundongos, bichinhos pelos quais nutro certa aflição, são muito moles e pequeninos.

Um atendente ajeitava a caixa branca com furinhos redondos para ali colocar um desses animaizinhos que seria vendido. Imaginei, por um segundo apenas, a sorte que o premiara, de ser adotado por uma família e ter uma jaula (santa sorte!) só para ele. Em seguida ouvi o vendedor perguntar ao cliente se "aquilo" era para uma cobra, ao que este assentiu. Abriram a tampa aramada e se puseram a escolher a vítima. Só então me dei conta do que estava acontecendo. Um daqueles pobres camundongos, tão miúdos e assustados, agrupando-se aos outros em busca de calor e conforto, serviria de alimento para uma cobra. Restavam-lhe poucos instantes de vida. Como puderam com tamanha frialdade decidir qual deles seria morto? Como o atendente pôde preparar a caixa de transporte com tanta desenvoltura? De olhos marejados, não esperei pelo desfecho da história. Dei-lhe as costas, torcendo intimamente para que o ratinho conseguisse escapar, para que todos os pássaros, cobras e animais enjaulados fossem capazes de fugir. A Revolução dos Bichos! Não custa sonhar...

Eu sei, eu sei, o produto que comprei tem proteína animal e seria inocente de minha parte fingir não estar, eu também, condenando franguinhos ao abate. Mas me choquei ao reconhecer a naturalidade mórbida com que convivemos neste planeta, homens e homens, homens e bichos, deuses e mortais. A mesma a nos fazer crer na quase religiosa lógica do forte estar apto a decidir o destino do fraco, ao qual resta se espremer contra o vidro no meio da serragem para não ser notado e viver ao menos mais um dia. Como disse a grande escritora Marina Colasanti: "a gente se acostuma, mas não devia".
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sábado, 20 de dezembro de 2008

Cadela De (Sem)Rua

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Recentemente me atribuí a deliciosa tarefa de zelar por uma cadela de rua. Susi, como a chamaram quando nasceu, é uma dócil vira-lata de aproximadamente 8 anos e tem residência cativa em uma esquina da Vila Santa Catarina, em São Paulo. Susi sempre viveu na rua, mas, ultimamente, quiçá pelo peso da idade, vem se mostrando mais quietinha, com aquele olharzinho triste de quem está cansando, de quem nunca teve família, nem casa, e apesar de cuidada pela vizinhança, ainda carrega o destino do abandonado, dormitando ao relento em dia de chuva e ventania.


Felizmente há pessoas olhando por ela. Os vizinhos passam pelas imediações e Susi se aproxima, orelhinhas baixas, rabinho abanando, pedindo carinho, coçadinha nas costas e, claro, se quiserem lhe dar comida, não vai achar nada mal. Não raro, para mostrar-se dona do pedaço, Susi persegue um carro ou late grosso para o transeunte desavisado, assustando-o. Tranqüilizem-se, passantes, é só latido! A bichinha, apesar do tamanho respeitável de sua voz, é uma criatura inofensiva, está castrada e devidamente vacinada, obra de um samaritano local.


Na última semana tomei conhecimento de algo bastante triste. Susi agora vai ficar sem rua. Isso mesmo, sem rua! O prédio da esquina, cuja cobertura é usada por Susi para dormir e descansar, onde também lhe colocamos a comida e a água, foi vendido e será demolido, e ela, que desde cedo fez morada ali, terá de reduzir seu território. Os mais próximos igualmente estarão de mudança com a venda do imóvel e ela se verá sem calçada para dormir e sem os rostos mais conhecidos para os quais se render em brincadeiras e afagos. Provavelmente Susi lidará melhor com esse novo abandono e desabrigo do que eu ou seus outros preocupados amigos. Quando nos acostumamos demais à solidão, é bem possível que ela mesma nos sirva de companhia, penso.


Ainda assim, há a amargura de imaginá-la perdendo mais uma vez. Perdendo a chance de reconhecer um local como seu, de saber que nas redondezas existem quem cuidará de atendê-la às pressas caso precise, como quando foi envenenada e teve de ser socorrida e, há poucas semanas, quando foi atingida por um motorista distraído, mas pudemos medicar-lhe o ferimento rapidamente.


Não consigo deixar de me perguntar como Susi enfrentará esse desafio em sua vida, justamente estando mais velhinha, mas tenho certeza de que o fará com a resignação e a pureza dos cães. De minha parte, continuarei atravessando diariamente os 7 quilômetros que me separam do cantinho escolhido por Susi para ficar, apenas para alimentá-la, dar-lhe carinho e atenção. E, para secretamente, consolar-me em sua força.



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Susi, em seu "cãotinho"

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Confissão no Altar do Desperdício

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Não falarei da comida santa de cada dia abandonada no prato e que se não tem como destino a vasilha do cachorro, vai para o lixo. Também não discorrerei acerca da lei que culpa os estabelecimentos doadores de sobras de alimentos aos necessitados, em caso de intoxicação, e ainda cobra imposto sobre doações. O assunto que me traz a estas linhas é o do desperdício de comida perfeitamente boa, e aos montes, praticado cotidianamente nas mesas dos restaurantes que trabalham com o sistema de rodízio, especialmente de carnes.


Recentemente estive em churrascaria na Zona Sul paulistana e o que vi não deve ser muito diferente do presenciado em centenas de estabelecimentos do gênero em todo o país. Porque desejam esbanjar um cardápio farto, os restaurantes costumam servir muito mais do que o freqüentador pode comer; seja por educação do cliente, ou falta dela, este está habituado a pedir excessivamente mais do que consegue consumir. Afinal, o valor do rodízio não está ligado à quantidade de que nos servimos. Talvez devesse se relacionar ao quanto desperdiçamos, assim nos obrigaríamos a agir com bom-senso, dignidade e elegância. Quanto o senhor deixou no prato? "Uma lingüiça e uma rodela de tomate"? R$ 50,00, com serviço incluso! E a senhora? "Salada de maionese, paelha, uma fatia de picanha, meia garrafa de coca-cola..." R$ 90,00, sem o serviço!



Numa mesa de 20 pessoas, impressionei-me ao notar quantas porções de pastéis ficaram intocadas ao mesmo tempo em que nos entupíamos (perdão pelo verbo!) com o bufê de saladas, pratos quentes e carnes. Igualmente, nos pratinhos designados para cartilagens, ossos, cascas, acumulavam-se pedaços de carnes em excelentes condições de consumo, apenas porque estavam mal passados, ou muito passados, ou porque não agradavam ao paladar do comensal. E se deixaram também as batatas, as polentas, as bananas à milanesa que já não tinham espaço no estômago. E não pude evitar de me sentir mal. Mal por não ter coragem de solicitar que toda aquela comida, cujo futuro seria o lixo, fosse ensacada e destinada aos muitos carentes de cada quarteirão da cidade. Fui covarde! Senti-me mal em fazer parte de um grupo incapaz de valorizar a comida que lhe é posta a disposição. Fui imoral! Mal em saber que milhares de outros indivíduos jamais terão sequer idéia do quanto lhes é tirado todos os dias, do quanto tripudiamos de sua eterna fome. Fui cruel!


No entanto, o tempo não pára e o desperdício de ontem já foi superado. Novamente estaremos às mesas dos restaurantes, festejando a orgia gastronômica, tendo a nossa frente, como troféus, os pratos abarrotados de refugos de nossa notável ignorância.



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Geração Crepúsculo

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Pelos corredores do colégio onde trabalho me deparei com diversos alunos lendo um romance pelo qual se declaravam apaixonados: Crepúsculo, de Stephenie Meyer. O livro parece ter conquistado os jovens corações de uma geração pouco afeita à prática da leitura. Vi-os agarrados às páginas, acompanhando a trama com tamanha emoção, que não podiam deixar de recomendar o título a outros colegas e a mim mesma. "Professora, você já leu? Precisa ler! É demais!..."


Comprei. Precisava ler! Como aspirante a escritora precisava ler, como professora de jovens e acanhados leitores, precisava ler. Queria saber o que os cativara tanto. Não foi necessário ir muito além das primeiras linhas para descobrir.


Há a fórmula mágica da identificação. Os adolescentes se identificam com os personagens, estudantes como eles, aborrecidos com as obrigações do colégio, mas ansiosos por contato social. A escola passou a ser o local mais seguro para encontrar outros de sua faixa etária e estabelecer uma relação saudável de amizade, paquera, troca de experiências, etc. A protagonista não é um modelo de beleza, é uma garota normal, como 99,9% das meninas de hoje e sempre, mas tem, como todas, seu quinhão de atrativos. É inteligente, observadora e divide com os leitores uma visão entediada e melancólica da vida, talvez fruto da separação dos pais, da ausência de intimidade com os mesmos, talvez de sua própria condição de adolescente introspectiva numa sociedade que evita o diálogo aberto e franco. Mas, porque a aventura e o amor são ingredientes ansiados pelo ser humano para alcançar a alegria de viver, a protagonista se achará súbita e completamente enamorada por um misterioso colega de classe e envolvida em uma série de aventuras e suspenses de tirar o fôlego.


Lido através dos olhos de meus alunos, Crepúsculo é sensacional. Não me atreveria a ler de outra forma. A história é o que tem de ser e atinge em cheio o público ao qual se destina, instigando-os a sonhar, a sentir, a falar de algo além de programas de televisão e Orkut, embora numa pesquisa superficial tenha encontrado mais de 460 comunidades orkuteiras voltadas para a obra de Meyer e sua recente adaptação para o cinema.


Não façamos análises profundas da qualidade literária da autora americana, isso perde a importância diante do fato de que o livro está cumprindo seu papel e levando nossos jovens à livraria, em busca não só de Crepúsculo, como também de O Morro dos Ventos Uivantes, título citado no livro e que está sendo comentado por tabela, além claro, dos próximos volumes da série de Meyer, um deles já lançado (Lua Nova) e o inédito Eclipse, que promete sair em 27 dias, segundo o site da Editora Intrínseca (com direito a contagem regressiva!). Nota 10 para Crepúsculo, que encontrou o caminho para mostrar ao jovem que a literatura pode não ser tão chata quanto ele desconfiava e ainda revelou um grato leitor onde antes havia, quando muito, um viciado em games e internet.

sábado, 13 de dezembro de 2008

Meme dos 8 desejos e 8 amigos



A escritora e amiga Claudia, em seu blog Desabafos e Reflexões , convidou-me a participar de um Meme!


"Que diabos é isso?"- pensei.


Devidamente colocado no post de minha "convidadora", segue a explicação da brincadeira, minha lista de desejos e meus 8 blogs convidados.


(Ah, Adorei a brincadeira, Claudia, obrigada!)


"O que é um meme? É tudo que se aprende por cópia a partir de uma outra pessoa. Nos blogs, a moda é a criação de memes específicos. Um blogueiro escreve sobre um determinado tema e convida outros para escreverem sobre o mesmo assunto. Então, vamos ao meme; este tem 3 partes:

Primeira parte - (o tema:) fazer uma lista com 8 desejos." (de Desabafos e Reflexões)


1) Poder trazer de volta os que já partiram e estar sempre ao lado das pessoas/bichos queridos;
2) Encontrar, "de grátis", o remédio citado pela colega Cláudia para qualquer doença, velhice ou feiúra;
3) Ter tempo, saúde, amigos e dinheiro suficiente para viajar pelo mundo, a começar pelo Egito e Irlanda;
4) Não ter mais medo de avião (não dele em si, mas dele caindo comigo dentro!); ou realizar desejo 7;
5) Nunca ter motivos para dizer a mim mesma: 'você não vai conseguir' ;
6) Ter o dom da Telepatia;
7) Ter o dom do Teletransporte, no tempo e no espaço;
8) Realizar todos os meus outros 7 desejos.
*
Segunda parte - convidar 8 blogueiros para continuar a brincadeira, comunicando-os por posts em seus blogs.
Marlene, do Cortina Aberta;
Cláudia Cristina, do The moon is in my head;
Bruno Cobbi, do Aprendiz de escritor;
Cris Rogério, do Vivo de Coincidências;
Patrícia, do Patricularidades;
Renata, do Epyphanias;
Roberto Carlos, do Peripatético;
Espero que possam continuar a brincadeira, caso não possam, sem problemas! A parte de listar os blogs e convidar os blogueiros é a mais trabalhosa, mas a brincadeira é interessante.
*
Terceira parte - comentar no blog que me convidou (já comentei), e orientar os convidados a publicarem o selo que está no início do post.

sábado, 6 de dezembro de 2008

Foto: J.M.Faria


O
sol
arde
no casco
nas velas
nas ondas d'alto mar
______________________________________
Mas ele leva o leme como quem chora,
porque não pode mais voltar.
*

Algumas portas não deveriam ser abertas


A noite atrás da porta
Algumas portas não deveriam ser abertas. Penso bastante nisso.
*

Perdi o sono certa noite quente de verão. Nenhuma brisa, os mosquitos, a ausência de vida nas ruas, nada me deixava dormir. Levantei-me atrás de um copo de leite. Já o tinha entre as mãos e me preparava para bebê-lo quando leves batidas chamaram-me à porta da entrada. Estranhei a visita tardia, mas o chamado insistiu. Depus o copo sobre a mesa e avancei pela sala até a janela. Dali foi possível identificar quem buscava por mim. Reconheci o homem franzino e de terno vinho. Jorge Serrat era seu nome e namorara minha prima durante três anos. Deve ter percebido que o olhava e se virou sorrindo para mim. Acenei em resposta e fui recebê-lo apropriadamente, convidando-o a entrar.
***

Desculpou-se por aparecer tão tarde e sem aviso, mas precisava falar comigo. Era ela. Adélia! Impossível esquecer-se dela! Procurava-a sem descanso porque necessitava retornar urgentemente para a Espanha, de onde se deslocara apenas para revê-la. Seu olhar era todo uma saudade. Notava-se que gostava realmente de minha prima. Vestira-se com esmero, os cabelos cuidados, nenhum fio em desalinho.

Passamos toda a madrugada conversando. Ele me contou de sua vida junto aos pais, já idosos, num vilarejo de casas de pedra. Longe do movimento das metrópoles sentia-se mais miserável e incapaz de superar o rompimento de seu relacionamento. Adélia e ele planejavam o casamento, mas os pais do rapaz pediram que tornasse de imediato para a Europa. Como Adélia não suportasse a idéia de se afastar de sua própria família, e talvez porque não estivesse tão apaixonada quanto ele, optaram pela separação, deixar as coisas andando como fossem, cada um para o seu lado. Jorge, entretanto, não se apanhava mais sem Adélia. Minha prima, por outro lado, recusava-se a mencionar o ex-noivo e tampouco nos permitia nomeá-lo. Proclamava-se feliz como há muito tempo não era.

Combinei de contatá-la e acertar uma entrevista entre nós três, pois antecipava que Adélia não aceitasse vê-lo a sós. Ele passou a noite em casa, no sofá. Eu me deitei e dormi as duas horas que faltavam para o horário em que costumava me levantar.
***

Tomamos café e nos despedimos até o final da tarde, quando eu lhe traria a resposta de Adélia. Queria ter com ela em pessoa, detalhar-lhe o estado melancólico de Jorge, convencê-la, até, a recebê-lo. Não foi possível, ela viajara para o sul onde ficaria até o final de semana. Surpreendi-me deveras entristecido em ter de dar a notícia ao jovem enamorado. Em casa, porém, ele já não me esperava. Não havia rastro de sua presença. Julguei que arrumara toda a roupa de cama, lavara a louça e guardara tudo. Teria desistido, meu protegido, embora soasse decidido na véspera? Ou saíra para espairecer e em breve o teria frente a frente para negar-lhe a chance de rever a mulher amada?
***

Nunca mais o vi. Era fim de tarde do dia 24 de janeiro de 1967. Alguns dias depois que Adélia chegou de viagem, contei-lhe o acontecido. Ela se pôs a chorar. Mostrou-me então uma carta que trazia dobrada dentro da carteira. Em palavras trêmulas, a Sra. Serrat comunicava que seu filho Jorge havia falecido num acidente a caminho do aeroporto. Queria tornar ao Brasil para buscar Adélia, fazê-la esposa. O acidente ocorrera no dia 22 de janeiro daquele mesmo ano, dois dias antes de sua aparição em minha porta.

- Não era ele, dizia Adélia... Não poderia ser...

Questionei a data na carta, minha saúde mental, a sanidade da mãe do rapaz. Mas uma mãe não se confunde com uma coisa assim, ponderou Adélia, não com a morte do único filho.

Jamais confiei em eventos que a ciência não dominasse e ainda espero compreender o que houve de verdade quando acreditei estar diante de um homem dado como morto. Algumas vezes, no entanto, sonho com Jorge Serrat e seu rosto de fina amargura. Desperto então com a nítida sensação de batidas à porta de minha casa. Levanto-me apreensivo, relutante, para encontrar apenas a longa noite do lado de fora.

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Grande Desejo

de Adélia Prado
---
Não sou matrona, mãe dos Gracos, Cornélia,
sou mulher do povo, mãe de filhos, Adélia.
Faço comida e como.
Aos domingos bato o osso no prato pra chamar o cachorro
e atiro os restos.
Quando dói, grito ai,
quando é bom, fico bruta,
as sensibilidades sem governo.
Mas tenho meus prantos,
claridades atrás do meu estômago humilde
e fortíssima voz pra cânticos de festa.
Quando escrever o livro com o meu nome
e o nome que eu vou pôr nele, vou com ele a uma igreja,
a uma lápide, a um descampado, para chorar, chorar, e chorar,
requintada e esquisita como uma dama
*
***
*
Não sou bela, estátua romana, donzela
sou mulher e ponto.
Nunca fui santa,
sou crua, estou pronta.

Pago minhas contas e cobro.
Não entro em igreja com manto escarlate,
mas visto meu corpo de branco, como quem casa.

Quando nascer de novo,
se me deixarem escolher a forma,
vou querer ser poema de amor
em versos de Adélia.
*
Olga Vallejo

domingo, 30 de novembro de 2008

Sem castelos que sonhar


Era um colégio imenso, escuro, prédio antigo, fechado para as férias de verão. Os degraus de madeira que conduziam ao primeiro andar gemiam a cada passo do menino.

Daniel explorava o internato onde estudaria quando os alunos regressassem, agora que ele ganhara o direito de ser um dos meninos do famigerado Kér Berus. Não viu diferença na enorme sala de aula de carteiras rigorosamente enfileiradas. Diferente, porém, era a lousa negra que avistou no fundo da sala. Era muito mais brilhante que qualquer outra, muito mais chamativa, muitíssimo mais proibida! Como que para provocá-lo, descobriu no chão um branco pedaço de giz, descuido certo do faxineiro cansado que conhecera na noite anterior. Tomou-o nas mãos.

Brincou, a princípio fingindo, que desenhava aviões cujos motores ronronavam em eco pela sala quase vazia. Lentamente, despertos pelas máquinas que agora cruzavam a ardósia preta, dinossauros sonolentos buscaram alimento nas copas de duas longilíneas árvores. Um rio largo e faminto, atiçado por terrível tempestade, engolia a paisagem, e como se pudesse, um alvo e risível barquinho navegava pelas águas escuras sem saber da imensa cachoeira que o esperava logo a frente. Do lado oposto ao da interminável queda d'água por onde escoou o barquinho, Daniel inventou, tão fácil quanto o sorriso que lhe veio ao rosto, um sombrio castelo no cimo de uma montanha escarpada. O menino lhe deu então várias janelas para que a construção melancólica pudesse respirar. Foi quando viu, ainda à deriva, o barquinho que sobrevivera miraculosamente, e que agora aportava na praia de areia cinzenta. Checou-lhe os mastros, as velas, todas as linhas estavam em perfeito estado, como se aquela viagem apenas começasse.

- Daniel! Daniel!

Era a voz potente do pai quem lhe chamava. O menino apressou-se em limpar o quadro com a manga da camisa. Se alguém soubesse que o filho do zelador já chegara à escola agindo tão incivilizadamente, seu pai seria repreendido.

Aos poucos não havia mais um castelo que sonhar, nem barco aonde ir, nem cachoeira por onde cair, nem gigantes pré-históricos, nem aviões para deixar-se levar, no entanto tudo estava como antes, limpo e em ordem.

Daniel colocou o giz sobre a mesa do professor. Meninos precavidos não podem ser pegos andando com coisas que não lhes pertencem! E se viu conferindo de novo a lousa, temente de que fosse desmascarado. Mas nada parecia ter sido tocado. O menino fechou a porta e desceu lentamente a queixosa escadaria para encontrar-se com o pai. Já estava quase no último degrau quando pensou ter ouvido ruídos no andar de cima. Que bobo, disse para si mesmo, é só imaginação, e se apresentou ao impaciente homem grisalho que o aguardava no jardim.

- Onde esteve?- perguntou-lhe, o pai.
- Só estava olhando...-respondeu timidamente.
- Não mexeu em nada, verdade?
- Nada...

E caminharam em direção aos medonhos portões de ferro que separavam o Kér Berus da construção contígua no fundo do terreno, onde viveriam, a partir de agora, o zelador e seu filho.
Tivessem olhado para trás, para a janela de um certo cômodo no primeiro andar, ambos veriam algo extraordinário. Relâmpagos iluminavam a mesma sala onde estivera Daniel há poucos instantes. Ressurgindo dos traços fracos na lousa negra, os personagens de uma história que se interrompera puseram-se novamente em ação. E bimotores de asas ebâneas rasgaram o espaço, incomodando os dinossauros de pescoços colossais ,que tentavam abocanhá-los. Logo abaixo, furioso rio arrastava valente barquinho em direção à inesperada e comprida queda d'água...

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Ora, direis, ouvi-lo!

Ora, direis, ouvi-lo!
(Um exercício de Interlocutor Pressentido)

Escrevo: "Quando saiu o sol". Clichê, mesmo, ? Que tal... "No instante em que a manhã de verão despertou"... Não ficou bom ainda? Sei... uma sugestão é sempre bom, sim,

Ao vir do sol ?

É...tipo assim, passável, . Aceito pra não te contrariar. Não estou sendo irônica, uma sugestãozinha é legal, quando a gente pede, claro. Não!!, mas você é de casa, pode sugerir à vontade. Prosseguindo...

Ao vir do sol "teus olhos calmos e macios iluminaram meu coração escuro e frio" e... Hum? Como, com cara de cartão de namorados? Mas que exagero! Não acho não, a gente não tá mais no século passado! Nem, ih, ó, ficando nada!...
Ai, vai, sugere....
Ao vir do sol
O teu olhar sereno e brando
Entra-me o peito, como um largo rio
De ondas de ouro e de luz, límpido, entrando
O ermo de um bosque tenebroso e frio

Humpf, não vejo diferença. Um pouco mais elaborado, talvez...Você parece mais um engenheiro fazendo uma ponte que um homem me ajudando num poema. Você inveja quem quando escreve? Ouvires? Ourives! Fala mais alto, pombas! Não, não fala nada, deixa eu continuar: "e o amor de verdade, que chegou como um relâmpago, aprisionei dentro de mim, nunca contei para viv'alma o que senti e"... Ai! Foi o viv'alma não foi? Não, não me incomodo, enxuga essa lágrima aí no canto do teu olho... é, chorou de tanto rir!

Desembucha, anda!

Ao vir do sol
O teu olhar sereno e brando
Entra-me o peito, como um largo rio
De ondas de ouro e de luz, límpido, entrando
O ermo de um bosque tenebroso e frio
No relâmpago breve com que veio
O verdadeiro amor, honra e desgraça,
Gozo ou suplício, no íntimo fechei-o*

..humpf, bem seis por meia dúzia! Acho, sim! Eu é que feri teu orgulho? Feriste-me primeiro! Ah, pelo menos quando me ofendo você acha que falei bonito!

Er...bonito, mesmo, ou você diz isso só pra eu te deixar ficar aqui enquanto escrevo? Ah, viu, como eu sei fazer poesia quando eu quero. Não, fofo, não comecei a querer só agora! Em frente... minha vez: "Seu amor aprisionei, e você me implorou para deixar ele voar, com tanta aflição fiquei, que abri meu peito para você partir"! Tá, não olha com essa cara pálida, não, já aqui, ó ,béquispeice. Vai, dita! Só dita, não precisa soletrar, engraçadinho! Humor de sapo aguado esse seu, ? "Sapo aguado", sa-po-a-gua-do, essas palavras te arrepiam? Será, por que hem? É, todo aí metido a ser celebridade, estrela... Ficou nervosinho? Perdeu o senso, é?

Como assim, se eu já amei? Claro que eu já amei, nada a ver... por quê? Ah...de novo essa história de que só quem ama entende estrelas... Tá certo, amargo amigo, vam'em frente que o tempo ur...ur... Urge!, obrigada!
...
*Os poucos trechos que prestam neste texto foram escritos por Olavo Bilac (e este último esclarecimento foi a pedido dele mesmo, tendo a autora se sentido bastante contrariada!)

domingo, 16 de novembro de 2008

Adelita terra e mar

(Este texto deveria ser apenas descritivo, minha personagem para o Jogo das Personas Trocadas. Infelizmente, baseada em fatos reais, esta personagem fugiu de meu controle e me contou um pouco mais que o esperado...)




Adelita terra e mar

Dona Adelita Steffanini carrega em suas frágeis costas 95 ou 96 anos de existência. Isso é o que estima a família porque a mais velha mulher do clã de origem italiana nunca mostrou a ninguém seus documentos pessoais, muitíssimo menos aqueles que lhe denunciariam a idade.


Tudo em Dona Adelita é pequenino: o corpo, a voz, o azul espremido dos olhos, o andar dificultoso e de passos apertados. As más línguas também acrescentariam à sua pequeneza, uma alma pouco dada a sorrisos e caridades.



Os vizinhos da "Matusquela do 301", como nossa personagem é mordazmente conhecida no edifício da Zona Sul , se incomodam com o volume absurdamente alto da televisão e do rádio nas horas mais impróprias e os constantes deslizes com gás de cozinha de Dona Adelita. Já tiveram de chamar a Comgás e os bombeiros às pressas inúmeras vezes com receio de que todo o condomínio voasse pelos ares.



Insensível às reclamações, Dona Adelita segue suas próprias regras. Levanta-se com o sol, dirige-se à padaria, implica com o caixa sobre o troco, quase sempre em moedas que lhe pesam insuportavelmente no porta-níquel, e volta para seu lar. Ali, ouvindo sua estação AM preferida, aguarda pela mocinha que lhe traz as compras da quitanda, lhe prepara a comida e arruma a casa, claro, sempre deixando algo para trás, um chão perigosamente úmido, um vidro com digitais, uma panela pouco areada. Entretanto, a empregada, assim como tudo na casa de Dona Adelita , é mantida pelo sobrinho que ela ajudou a criar e a quem não vê há uns 3 anos. Ela se contém, portanto, nas críticas para não reclamar dos dentes daquele cavalo dado, uma mula imprestável seria mais correto, mas, quem na idade dela se pode permitir o luxo de esperar demais da vida? No passado sim, ela já tivera expectativas. Há longo, longo tempo, quando seus irmãos e pais ainda eram vivos.




Fora numa época distante em que a família de muitas posses se relacionava com pessoas importantes. As duas filhas, Adela e Andradina, eram moças bonitas, do tipo harmonioso e refinado. Sabiam que a educação tradicional lhes preparara para um bom casamento e que tudo era apenas questão de paciência, até que se decidissem por um dos mancebos da imensa fila de cavalheiros paulistanos dispostos a desposarem uma das belas italianinhas. Mas o amor não veio. Nem para uma, nem para a outra. Adelita chegou a desprezar um rapazola que depois seria presidente do país, mas seu coração não parecia se arrepender disso. Nem quando os anos foram correndo e arrastando para longe seu pai, sua mãe, seu irmão, o único casado e com filhos, e finalmente, há pouco tempo, sua irmã mais velha, a saudosa Dininha.



Não se pode dizer que Dona Adelita não tenha nenhum arrependimento, no entanto. Não raro se põe a chorar para dentro, sem lágrimas, numa mágoa que não encontra culpado outro que não ela mesma. Não pelo ex-presidente, não por tantos e melhores candidatos, mas por um vigoroso cocheiro mexicano, que lhe sussurrou um dia, ao ouvido, uma conhecida rancheira: Se Adelita partisse com outro/ A seguiria por terra e por mar/ se por mar, num navio de guerra/ se por terra, em um trem militar... E Adelita nunca mais se esqueceu do jovem que a perdera naquela fria tarde de 1949. E tampouco pode encontrá-lo novamente, em nenhum outro sonho, por terra ou por mar.


quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Estou tirando tudo do meu ex! Vou deixá-lo sem nada!!!

Calma, gente, estou falando do meu ex blog do curso, o superfluoportuno. Aos poucos vou trazendo os textos de lá para este novo endereço!

Tosca Fita


Tosca Fita

(Baseado em Fita Verde- de Guimarães Rosa)


- Droga de fita! Tenho certeza que era verde quando pus no cabelo! Agora tá meio amarelada, nem combina mais com a roupa! Só falta o Lobão não gostar de mim assim e não me passar os bons esta noite. Sim, porque aos sábados é que vêm os mais cheios da grana e a gente consegue fazer uns dois ou três passeios pela "selva", na boca dos carniceiros... Ah... se eu tivesse ouvido a mãe ou até o pai, que apesar de lenhar numa época de ecologia e tal, era um homem bom,.. Mas, não né, ô Tosca, tinha que vir pra cidade, desviar da vida e cair no conto da Vó Lupita, que depois morreu e deixou a gente nas mãos desse grosso do Lobão Gigolô. Pelo menos acho que ele me curte, sou a única que passa algumas noites com ele. Por isso ele me dá os clientes com mais dinheiro! As outras meninas se mordem de inveja e nem desconfiam que o Lobão só faz-de-conta dentro do quarto. E daí? Todo mundo precisa manter as aparências!

- Tá pronta, Tosca? A casa tá cheia!

- Escuta ele atrás da porta como ladra em público.... e esta fita, gente, que não tem cor! É, Tosca, agora vê se deixa esse laço descorado quieto, senão desmancha o penteado e não dá tempo pra arrumar. Vai assim mesmo que... Droga! logo agora? Alô?... Oi, mãe... tudo... não, ó mãe, não dá pra falar, é que vou entrar numa aula agora mesmo, é de... você não vai saber do que é, mãe...É... de História! É, é coisa chique! Estudo direitinho, sim, mãe... pra senhora também, tchau, mãezinha.

- Que merda é essa, Tosca, por que demorô tanto? Tá chorando? Enxuga essas lágrima que não quero tristeza hoje no salão! Tá cheio de crassudo por aqui e a gente vai faturá legal. Anda... é a tua vez! E vê se rebola esse seu doce em cauda que os caçador tá doido pra te prová e eu já falei pras otra que você escolhe primeiro! Agora dá uma risadinha e diz: quem é que te ama? Hem? Quem é que te ama? Hem? Hem?

- É você, Lobão!

- Isso, assim. Agora vaza, que era uma vez! Linda,...linda de frente, gostosa de costa e... mas que porra de fita preta é essa no cabelo dela?

domingo, 9 de novembro de 2008

Eterna Prisão

ou Um Beijo Que Não Houve


Eram apenas relevos sobre um álbum envelhecido. A figura de um cavaleiro e sua dama, cativos no instante de um beijo. O artesão que lhes dera vida nunca soube disto. Nunca os ouviu gritar, implorando pelo encontro que jamais viria. Algumas vezes, sobre a velha mesa, se nos aproximarmos o suficiente, podemos escutar-lhes o choro sentido. São dois amantes concebidos pelo frio coração de seu criador, separados pela eterna distância de um amor que não se consuma.


Aurora Scribens



sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Abissais

(Dedicado ao Mestre que me desafiou, um escritor em desassossego)

Eu sabia! Tinha que ficar no meu canto, sem chamar a atenção, mas não, quem é visto é lembrado. O burrinho pedrês agora sou eu! E apressaram-me na tarefa. Que alma roubar? Estarei preparado?

Aqui me vejo, próximo da mesma casinha amarela onde se reuniram os Quatro Cardeais em uma noite clara como esta. Aqui hei de encontrar uma alma que me sirva. Mens sana in corpore sano? Se assim for este é bastante belo, veja como ri, deve ser bom para variar ocupar o corpo de quem está feliz. E aquele? Seria igualmente maravilhoso viver em quem se apaixonou e assim, de dentro dele espiar tudo e quem sabe, depois, com um beijo ir viver nela e descobrir como amam os mortais. Não, não, Aquele Que Manda, implacável, não aprovará quando lhe contar sobre isto Florido demais para um abissal como você! Deixe estar, que aqui não faltam candidatos.

Sigamos essa, que vem e desliza, levando a lua sobre a testa! Que gente engraçada! Se me advertissem, teria consultado O Manual de Obsessão- Guia Prático Para Demônios Inexperientes. Adejo rápido sobre outra, ali, atrás da barra do único bar aberto. Leio-lhe os pensamentos. Preocupa-se com o horário! Por que oito e meia? O que espera? Poderia eu esperar junto dela, colocar-me quietinho no seu ombro, leve, pousado mais como quem repousa. Roubar-lhe segredos e temperos. Entregar-me-los-ia sem luta, talvez, com esse semblante de tão plácida senhora?

Provo.
Acomodo-me.

Gentilmente nos pomos a aguardar. Pode que perceba que não é mais a mesma, pode que erre no sal e no açúcar sem saber por quê. Mas agora sou eu quem está por trás de seu olhar maternal, aguardando os filhos que virão famintos. Serei descoberto, descortinado, expulso, esconjurado. Até lá muito terei feito, visto e aprendido. Então, outros como eu estarão tomando quem daqui se aproximar. Lentamente o faremos, como há milhares de anos, depois retornaremos ao Mestre, que experimentará o que lhe contarmos e nos dispensará, finalmente, para a terra da qual nunca se volta...


quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Catherine e Heathcliff

Outro clássico que inspira, assusta, encanta, tanto pela grandeza e nudez de suas personagens, quanto pela maturidade de sua autora, a inglesa Emily Brontë, morta aos 30 anos, O Morro dos Ventos Uivantes imortalizou os protagonistas Catherine e Heathcliff como símbolo de um amor impossível, levado aos extremos da locura e do desejo. Kate Bush, nos anos 70s, tornou famosa a música Wuthering Heights, uma homenagem à paixão que consumiu o par central do único romance de E. Brontë.
***

- Se eu estivesse no céu, Nelly, seria extremamente infeliz.
- Porque você não é digna de ir para lá. Todos os pecadores seriam infelizes no céu.
- Mas não é por isso. Sonhei uma vez que estava lá.
- Já lhe disse que não quero ouvir seus sonhos, Srta. Catherine[...]
- .[...] Ia só dizer que o céu não me pareceu minha verdadeira residência. Dilacerava o coração de tanto chorar no desejo de voltar para a terra e os anjos ficaram tão aborrecidos com isso, que me precipitaram no meio da charneca, no alto de O Morro dos Ventos Uivantes, onde despertei, chorando de alegria [...] Não me interessa casar com Edgar Linton, como não me interessava estar no céu. E se o sujeito perverso que aqui vive não houvesse degradado tanto Heathcliff, eu não teria pensado nisso. Agora me degradaria eu mesma, se casasse com Heathcliff. Assim ele nunca saberá como eu o amo. E isso não porque seja belo, Nelly, mas porque ele é mais eu do que eu mesma. Seja de que forem feitas nossas almas, a dele e a minha são as mesmas e a de Linton é tão diferente como um raio de lua de um clarão, ou como a geada do fogo.
(Capítulo IX)



***

- Você me fez ver como foi cruel- cruel e falsa. Por que me despreza? Por que traiu seu coração, Cathy? Não tenho uma só palavra de conforto. Você merece isto. Você se matou. Sim, pode me beijar e chorar, e os beijos e as lágrimas que me arrancar à força lhe trarão a ruína- eles lhe trarão maldição. Você me amava, então que direito tinha de me abandonar? Que direito- responda-me- de cismar com Linton? Já que a mágoa, a degradação, a morte e nada que Deus e Satanás quisessem nos infligir poderiam nos separar, você, espontaneamente, o fez. Não parti seu coração- você mesma o partiu e, ao parti-lo, partiu também o meu. Tanto pior para você que eu seja forte. Se eu quero viver? Que tipo de vida eu levaria, quando você...- Oh, meu Deus- quem gostaria de viver com a alma na sepultura? (Capítulo XV)

***


- Como morreu ela?- conseguiu ele afinal dizer...
- Suavemente[...]
- Que ela desperte em meio dos tormentos- gritou ele com terrível veemência.[...] E eu, eu rezo uma oração... hei de repeti-la até que minha língua se entorpeça... Catherine Earnshaw, que tu não possas encontrar sossego enquanto eu tiver vida![...] Sei que fantasmas têm vagado pela terra. Fica sempre comigo... encarna-te em qualquer forma... torna-me louco! Só não quero que me deixes neste abismo onde não te posso encontrar! Oh, Deus! é inexprimível! Não posso viver sem a minha vida! Não posso vier sem a minha alma!
(Capítulo XVI)

(O Morro dos Ventos Uivantes- Emily Brontë, 1818-1848)

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Bem-aventurado

Em uma belíssima antologia, infelizmente fora de catálogo, deparei-me com o trecho abaixo. Lógico, busquei o clássico de Dickens o mais rápido possível e, imaginem! Amor à primeira linha! Espero que gostem...

Durante todo esse tempo, eu continuava amando Dora, com mais força do que nunca. Sua imagem era meu refúgio nos desapontamentos e angústias, e compensou em parte, para mim, até mesmo a perda de meu amigo. Quanto mais eu me apiedava de mim mesmo, ou me compadecia dos outros, mais buscava consolo na imagem de Dora. Quanto maior o acúmulo de enganos e problemas no mundo, mais brilhante e mais pura reluzia a estrela de Dora, alta acima do mundo. Acho que eu não tinha uma idéia definida do lugar de onde Dora tinha vindo ou em que grau ela estava relacionada a uma ordem mais alta do ser, mas tenho certeza de que repeliria com indignação e desprezo a noção de ela ser simplesmente humana, como qualquer outra moça.
Se é que posso me expressar assim, estava impregnado de Dora. Não apenas perdidamente apaixonado por ela, mas embebido dela até os ossos. Metaforicamente falando, seria possível sugar de mim uma quantidade de amor suficiente para afogar uma pessoa; e, no entanto, permaneceria o bastante dentro de mim para permear minha existência inteira.

(David Copperfield, Charles Dickens, 1812-1870. Imagem: Sir Frank Dicksee)

Cena da adaptação produzida pela BBC: David Copperfield- David C. conhece Dora Spenlow

ex-História Sem Título


Gorjeio de amor (romântico título, gentilmente sugerido pela colega Laura Fuentes!)


Linda noite, limpa. O garoto fitou a Lua imensa. Do alto ela veria tudo, deduziu. Juntou as mãos na frente do rosto, respirou fundo olhando para ela e rezou "Lua, se vir por aí Canarinho que me fugiu, peça que venha se despedir. Não fez bem voar deixando a gaiola vazia, comida posta e água fresquinha. Mamãe disse que é assim também com os filhos, que um dia sairão de casa sem dizer para onde, os ingratos. Mas não eu ! respondi inconformado. Não entendo , Lua do Céu, se a gente brincava e ele cantava, por que é que um dia ele achou de ir embora? Peça que volte meu pássaro cantor... sou tão infeliz sem ele".
Tomada de pena, a Lua, que conhecia aquele mesmo pesar- parira estrelas, meninas inconstantes- buscou entre florestas, campos e estradas, sussurrou ao Vento,que invocou a Luz para ajudar. Mas nada, nada de Canarinho aparecer. Então o Solo, porque ouvira falar da busca, chamou por uma Semente crescida para que contasse ao Lago, que por sua vez avisou as Nuvens, que esperaram para dizer à Noite que o canário não fugira. Repousava em segredo nas entranhas da terra, já sem cantar. Não fora ingratidão, não fora tristeza que o fizeram partir. Deixara o menino porque sua vida chegara ao fim.
A pálida Lua não pôde contar essa história ao pequeno que já muito sofria. Então, quando em outra noite ele apareceu à janela , a Lua inventou:
"Menino, carinho meu, descobri do canário e das paragens por onde descansa. Pediu-lhe desculpas por não ter dito que num sonho se vai longe. É que sem perceber, dormindo, afastou-se deste lar, mas vive em outro feliz e até fez família por lá. Se quiser muito, ele volta. Deixa filhotes e ninho e por amar tanto este menino, não se importaria de voltar."
E o menino sorriu pensando em seu amigo, que vivera aprisionado e agora era contente.
"Não, senhora Lua, diga-lhe que fique, não há o que perdoar. Senti saudades, mas agora entendo; senti raiva, e me envergonho. Esse pássaro não me pertencia. Era do mundo e eu não sabia. Tinha sua própria história a viver. Mande-lhe apenas mais um recado, sem querer abusar. Que seja feliz, como eu fui quando me ensinou a cantar."
Dizem que a Lua ainda estremece ao recordar, porque naquele instante, de dentro da terra dormente, ergueu-se um trinado de dor. Não era a morte, era a vida, que respondia ao menino, no seu gorjeio de amor.

(*Aceito sugestões. Na verdade, preciso delas, porque o que me saiu, "O Menino a Lua e o Canarinho", pareceu-me assustadoramente pobre; pobre de marré, marré, marré...)